CARLOS GARRIDO CHALÉN: O CRIADOR DE UM NOVO PARADIGMA FUNDAMENTAL NA POESIA MUNDIAL

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Por: DINAIR LEITE

Quando Harry Truman, Presidente dos Estados Unidos, em seis de agosto de 1945, deu a ordem de lançar sobre Hiroshima, a bomba atômica Little Boy, feita com urânio, que matou 200 mil pessoas e, três dias depois, sobre Nagasaki, a bomba Fat Man, fabricada com plutônio, que provocou a morte de outras 80 mil, uma vergonha imensa confrangeu a alma da terra e comoveu, por sua transcendência devastadora, o próprio Céu. Seis dias depois da explosão sobre Nagasaki, o Japão anunciou sua rendição incondicional, que foi formalizada no dia dois de setembro, com a assinatura da ata de rendição, concluindo a Guerra do Pacífico e a Segunda Guerra Mundial.

Treze quilômetros quadrados da cidade de Hiroshima, uma cidade de importância industrial e militar, em torno da qual se encontravam os quartéis generais da Quinta Divisão e os do Segundo Exército Geral do Marechal de Campo Hata Shunroku, que acompanhava a defesa do sul do país, foram destruídos, provocando pavorosos incêndios ao longo de 11,4 quilômetros. A explosão estourou os vidros das janelas dos edifícios localizados a 16 quilômetros dali e foi sentida em locais que ficavam a até 59 quilômetros de distância. Dos edifícios de concreto, 69% foram destruídos e o restante, seriamente danificado. O mesmo aconteceu com as numerosas oficinas de madeira e instalações industriais na periferia da cidade. As casas de madeira com piso de ladrilhos e muitos edifícios industriais foram reduzidos a escombros, pelo fogo. Trinta por cento da população, que chegava a 380 mil habitantes antes da guerra, morreu instantaneamente e outras 70 mil pessoas ficaram feridas. A energia liberada pela bomba foi tão poderosa que queimou as pessoas por baixo da roupa.  A detonação provocou uma explosão equivalente a 13 mil toneladas de TNT, elevando a temperatura a mais de um milhão de graus centígrados, gerando uma bola de fogo de 256 metros de diâmetro.  A bomba Little Boy, devido a ventos laterais, desviou-se do alvo principal, a ponte Aioi, cerca de 244 metros, explodindo justamente em cima da Clínica Cirúrgica de Shima, repleta de doentes. Dizem que, enquanto o Enola Gay afastava-se a toda a velocidade da cidade, o Capitão Robert Lewis, copiloto do bombardeiro, comentou: “Deus meu? O que fizemos?”. Trinta minutos depois, a noroeste da cidade, começou a cair uma chuva de cor negra, como uma nuvem sinistra, acompanhada de terríveis flashes e um forte estrondo, cheia de sujeira, poeira, fuligem e partículas altamente radioativas, que contaminaram até as zonas mais remotas.

No dia nove de agosto de 1945, o B-29 Bock’s Car, pilotado pelo Major Charles W. Seeney, transportou a bomba atômica denominada Fat Man, com a intenção de lançá-la sobre Kokia, como alvo principal, e Nagasaki, como alvo secundário, mas as condições atmosféricas impediram que fosse lançada sobre o alvo principal. Então, o procedimento foi contra Nagasaki, um dos maiores portos do sul do Japão, que teve grande importância durante a guerra, por sua grande atividade industrial, inclusive a produção de artilharia, navios, equipamentos militares e materiais de guerra. A bomba, lançada ás 11h01, explodiu quarenta e três segundos depois, no vale de Urakami, sobre a cidade, a 469 metros de altura, e a quase três quilômetros de distância do lugar originalmente planejado. A maior parte da cidade foi protegida pelas colinas próximas, mas a explosão teve uma detonação equivalente a 22 mil toneladas, elevou a temperatura a 3.900 graus Celsius, aproximadamente, e provocou ventos de 1005 quilômetros horários. Imediatamente, morreram 75.000 pessoas. Até o fim de 1945, essa cifra superou os 80.000. A destruição estendeu-se por um raio de 1,6 quilômetros e os incêndios espalharam-se pela parte norte da cidade, até uma distância de 3,2 quilômetros do epicentro. Diferentemente de Hiroshima, em Nagasaki não houve a “chuva negra”, mas seus efeitos foram mais devastadores, nas imediações do epicentro. Calcula-se que a porcentagem de estruturas e edifícios destruídos foi da ordem de 40%, incluindo o estádio, habitações, hospitais e escolas. Um número desconhecido de sobreviventes de Hiroshima foi acompanhado pela desgraça: haviam se deslocado para Nagasaki, fugindo da tragédia, e ali foram novamente bombardeados.

Esses dois fatos históricos, de destruição terrível, que impactaram e deixaram uma sombra tenebrosa e indelével na memória da humanidade, foram abordados, à sua maneira, a partir de sua perspectiva de poeta essencial e criador de um novo paradigma literário no mundo, que cedo ou tarde ter-se-á de reconhecer, pelo grande poeta e escritor peruano de importância universal, Carlos Garrido Chalén, em sua obra, “Não sei ler, porém me escrevem” (No sé leer, pero me escriben), a partir da qual, abatido em consequência de sua própria dor, descreve abalado, através do uso de metáforas, de figuras literárias de imenso valor e sentimento, como as aves de Hiroshima e Nagasaki, guiadas por seu instinto, sobrevivem à ruína e atravessam os mares, para contar-lhe com riqueza de detalhes, sempre no idioma dos pássaros invictos que ele domina, o que ocorreu nessas duas cidades japonesas, destruídas pelo horror nuclear e a impudência da guerra.

Não sei ler, porém me escrevem

as garças sobreviventes de Hiroshima:

são cartas que vêm voando até meu ninho

com as pombas de bico dourado e azul de Nagasaki.

Chegam até mim em explosões,

enquanto o fogo consome as folhas mortas.

Me escrevem em hiragana e katakana,

com sua dor resumida nas mortalhas.

Me escrevem com palavras que não entendo

que têm origem no silêncio e no nada

como este cigarro que se acaba

pressuroso e vencido na batalha.

Me escrevem, através do odor de carne que murmura,

vestidas de água verde e de penachos.

Vêm sujas da explosão, débeis e apagadas

e preciso entendê-las com a alma.

 

Oita me ensina a comportar-me

e, em sua gramática, falam-me suas cachoeiras.

Foram assombradas pelo barulho da pólvora

e tentam sobreviver ao ataque.

Tremem suas asas e seus olhos

e é de urânio e de plutônio

a voz que calam.

 

Não sei ler, porém me escrevem, através de seu odor

de fornalha, de bomba nuclear e fatalidade. (Através de seu odor de fornalha e fatalidade)

 

É com essa intensidade incrível, que o caos desencadeado provoca, que o poeta Carlos Garrido Chalén, dono de uma grande sensibilidade que emociona, exalta, e nos faz perder o chão a cada instante, chega a nos dizer:

 

“Não sei ler, porém me escrevem

as pombas mensageiras do pôr-do-sol.

Me escrevem fazendo sinais no céu

e em sua agonia cáustica

macula-se a madrugada.

Não sei ler

e me atrapalho quando canto

e embriaga-se de enigmas minha palavra.

Tudo me atordoa e a tristeza me desanima

e os pássaros de Hiroshima

levam-me em sua jornada.

Que mais haverá além da dor

desse ferimento cruel e interminável?

Os pombos escrevem a resposta.

Mais além estão as cartas nunca lidas da paisagem calcinada

do espanto dos corpos que se agitam

no ofício perplexo da manhã.

E ainda que não saiba ler

no idioma da avifauna

entendo o que elas agitaram em seu pesar

impudentes convidadas da tristeza.

Não sei ler, mas percebo

o que dizem as corujas que se calam

e por isso entendo aquele gorjeio

que percorre os gansos quando cantam.

Vêm me ver, trazendo-me em sua tarde

o negro azul, a poeira imoral

do massacre.

E sofro sua dor como toda a humanidade

que continua em lágrimas

e me acostumo ao calor

de seus fantasmas.  (Me acostumo ao calor de seus fantasmas)

 

Carlos Garrido, Chalén chega então ao precipício, que geograficamente contextuou sua dor, e se cobre da desventura, para dar-nos a oportunidade de fazer o mesmo, também nós, que olhamos através do nosso espanto de leitores, e permitir-nos acessar essa mágica sinopse da história não escrita que, com sua coragem de criador incomparável, atreve-se a revelar.

 

Os pássaros achegam-se a ele, porque todos nós poetas somos, de alguma maneira, pássaros que voamos os céus, os mais infinitos, em busca da vida. Buscam-no porque o sentem de sua espécie, animal vertebrado, ovíparo, de respiração pulmonar e sangue quente, bico duro, corpo coberto de penas e com dois pés e duas asas aptas para o voo; e em sua alma abrigam-se propositadamente, para contar-lhe qual foi o tamanho do infortúnio e quantos inocentes, em sua maioria civis, foram levados à morte, a um custo inaceitável.

 

É precisamente nessas profundidades, que o poeta desvela a morte de seus véus nominais e divisa segredos que ninguém havia antes conseguido perceber, penetrando no caos, dando-nos a oportunidade de perceber a novidade de sua poesia a qual, apesar de sua infinita consternação pela catástrofe que descreve, é embelezada pela qualidade de metáforas que são animadas, através da eternidade, pelas vítimas que foram habitar o infinito e, de lá, talvez para esquivar-se dos vivos que não param de morrer, nos alertam, não somente sobre os perigos da guerra, mas também dessa paz sem justiça social, que é um embuste para a humanidade, e que Garrido Chalén vem combatendo há anos.

 

Não sei ler, porém me escrevem degolados

os pássaros de Hokaido e Lamaguchi,

de Kagoyima, Oita e Toiama.

De Tokio, Totori e Yizouka.

Juntam-se aos de Ehime, Gifu e Fukuyama.

Aos de Ibariki, Hiroshima, Nagasaki e Miyazaki.

Corujas manchus e patos mandarins,

cucos, gansos brancos e gansos marinhos.

Todos em uníssono, desde Akita até Aomori;

juntos a partir de Nigata, Nagano e Nagasaki.

São os pássaros que nunca se entregaram

nem falaram de rendição

sobre as nogueiras. (Os pássaros que não falaram de rendição sobre as nogueiras)

 

O poeta peruano Carlos Garrido Chalén, Prêmio Mundial de Literatura “Andrés Bello” 2009, da Venezuela, autor de uma trintena de obras publicadas, entre poesia, ensaio, conto e novela, mostra-nos a história dolorosa, contada por aves que vivem ao seu redor, para inserir em sua alma, o espetáculo de feitos de guerra deploráveis, que jamais deveriam repetir-se, mas aconteceram, como sinais inequívocos da irracionalidade do homem contra o homem, dessa barbárie que acerta as contas sem medir o tamanho das lágrimas. Diz Carlos Garrido sobre o Enola Gay:

 

“ Em seis de agosto de 1945

O Enola Gay

lançou sobre Hiroshima o little boy,

de urânio em seu mais alto grau:

um ruído ensurdecedor encheu de clamores

as trombetas

e no cântaro da dor

anuviou-se a chaga.

Uma coluna de fumaça, cinza-arroxeada

saiu daquela desordem

(a um milhão de graus centígrados infernais)

e no chinelo foi registrada a escala.

Em nove de agosto, às onze da manhã,

o espetáculo da aniquilação nuclear

repetiu-se em Nagasaki,

e Kyushu encheu-se de espanto:

o bombardeiro B-29, Bock’s Car

lançou sobre a cidade o fat boy,

de morte e de plutônio

e os pássaros

fugiram

vertiginosamente

até o nada.

A chuva tóxica

lhes calcinou a alma. (A chuva tóxica lhes calcinou a alma)

 

Enquanto criador de uma nova maneira de fazer poesia no mundo, fala com sinceridade e como “não tem medo do amor”, mostra-nos “a guia de seu avanço, a superação de sua limitação”, acaso sabendo que “desde seu arrebatamento por Arúspice, brama em vermelhidão o sol poente” e é “um corcel azulado da lua nos outeiros”, “um barco atemorizado pela enormidade assustadora da noite” e cuja baba, a seu fogo interior inamovível, chega “como um clarão de luz na madrugada”. Dessa madrugada que está nele e também numa humanidade desgraçada por sua fúria iconoclasta. Ter vivido nesse mundo criativo permitiu que ele se convertesse, tal como diz a poeta porto-riquenha Gloria Marini, no grande poeta deste século, mas a nós também que, de tanto acompanhá-lo, mimetizados por sua ternura e sua eloquência, impelidos a morar nele e com ele, perseguimos seu estro vital e o santuário que sua literatura fascinante nos transmite.

 

Porque não tenho medo do amor

esta é a guia do meu avanço

a superação de minha limitação.

Desde que fui arrebatado por Arúspice

ressoa em vermelhidão o sol poente

e sou um corcel

azulado da lua nos outeiros

um barco assustado

pela enormidade sinistra

da noite.

À minha baba chega

como um clarão de luz

a madrugada.

Meu peitoril perambula pelo areal

como um bandoleiro agreste na batalha.

Por isso fiz

um hangar com minhas articulações

um casulo

com as espigas de minha combustão.

E devo entender que, ainda que não saiba ler,

é minha a púrpura da ferida,

o santo dobre atordoado e ácido

da flauta..

Desajeitado é o vento do aguaceiro

despudorado e fraudulento o barulho cruel

de burlador e de velhaco do amianto..

Por isso estou aqui

com meu farol

de adivinho e de guardião

uivando no atoleiro das fornalhas

navegando em meu barco de arlequim

todos os mares.

Hiroshima e Nagasaki são um canhão

que indica a emboscada

e eu um jacaré disfarçado de sombra

anacoluto,

perfumado, nos manguezais.

Cindida pela dor morre a rua

e na estalagem do abismo o aguaceiro.

Por outro lado

confunde-se o elmo

e enche a catarata de amanhecer.

Algum dia hás de saber

que entre mim e tu

alvorece com seus signos de fé,

a madrugada. (Azulado de lua nos outeiros)

 

No novo formato paradigmático, inventado por Garrido Chalén, de tanto buscar a poesia e mergulhar nela, todas as palavras têm um destino a conquistar e é nesse futuro que seu presente recria-se, para interiorizar-se em suas cores, sabores, e na expressividade que cada uma acusa, propondo novas conquistas literárias a seu próprio idioma, que já é por ele celebrado, e a todos os idiomas da terra aos quais o homem costuma abrir o coração, para que dentro dele se enterneçam. É por isso que quando sua poesia se expressa, não é só ela que acaba por contagiar-nos, mas também a memória coletiva, em todas as palavras, seja qual for a sua natureza, que são habilitadas por seu coração de poeta – em seu caso, o coração de Davi ressuscitado – para dizer o que sente.

 

Não sei ler, porém me escreve do atoleiro

dissimulado,

franzindo o cenho,

o encantamento

e à minha cabana achegam-se alvorando de luzes

as cigarras.

À minha pose de Azhar

chega com sua cantilena celestina

a investida

e rasga com sua vagabundagem

a madressilva

e na ranhura da tempestade canta a curda.

Mato em sua cobertura no matagal

a hortelã.

E não sei de quem é o desvão que mergulha

na neblina

que se torna tumulto e algazarra no lamento.

Não sei ler, porém me escrevem

as pombas com seu bico vaporoso.

Intrusa e forasteira é a dor

que se amanceba na brancura monástica

de suas manhãs.

E ali, embriagada de sons,

cintila a garoa

e clareia e renuncia a tempestade. (Me escreve do atoleiro, franzindo o cenho, o encantamento)

 

No poeta Carlos Garrido Chalén, a quem conheci pessoalmente em um Congresso Universal de Poetas e Artistas, realizado em Tijuana, México, e não deixei de ler nunca mais, além de admirar sua obra majestosa, há uma espécie de celebração que nunca acaba; a busca de uma literatura que é um reflexo que seu vulcão interior, carregado de preceitos não menos incendiários, qualifica. E nessa intensidade, o escritor citadino, nascido num pequeno porto de seu país chamado Zorritos, termina por imantar-nos, convertendo-nos sem maldade, em seguidores de uma estrela em cuja existência nem todos reparam, porque lhes falta alma, mas que servirá, cedo ou tarde, para ensinar-nos a semear, em um Continente que reivindica a brilhante qualificação de seus epítetos, a doce expressão de seus enunciados, que afiançam seu valor, diante do mundo em geral, e que lhe permitem o luxo de ser pedagógico quando diz:

 

Quando tiver que fazer um balanço da vida

e alguém, por algum motivo,

esquecer de içar tua bandeira na batalha

entra na tua barricada

e sê caudilho e paladino com tua valentia.

Acólito do romanceiro

penetra na arena do assédio

e sob as faldas do percal e sua espreita

que  sobre ti não impere a desconfiança

nem tampouco a amplitude do engano;

que viva o Deus do ancoradouro

que um dia te criou

perfumado de mirra

para ter um mastro onde ondear

seus lábaros de alabastro.

Que em teu pântano, o único renque

seja a conjectura

que borbulha inquieta nos mirtedos

para que um belo dia

corrente no colosso da borrasca

tudo termine sendo esse signo agitador

que o ar toscaneja com sua insolência. (Para ter um mastro onde ondear seus lábaros de alabastro)

 

Por isso, desperta nossa atenção o efeito emotivo incomparável que Carlos Garrido Chalén alcança em sua obra “Não sei ler, porém me escrevem” (No sé leer, pero me escriben), nem surpreende que lhe escrevam da montanha de Kitadake, “as aves imortais de Kinki e de Ishikari” que navegaram o Biwa e o Shinano, para trazer-lhe “o ar boreal de seus protestos” ou que trate de convencer-nos de que a poesia é capaz dos privilégios mais imprevisíveis, dos descobrimentos mais assombrosos, porque não é um apelo corriqueiro à palavra, e sim um deixar que seja a palavra a lançar mão dele, porque lá, no amanhecer de suas consequências, nesse transcorrer de criar do vazio, uma existência, já nada é impossível.

 

 

Me escrevem da montanha de Kitadake

as aves imortais de Kinki e de Ishikari:

Navegaram o Biwa e o Shinano

para trazer-me o ar boreal de seus protestos.

 

Caminham sobre as torrentes tempestuosas

de Kuroshio e de Yoshio

registrando em seus olhos vitoriosos

a fala dos castanhos.

Faias, tuias, pinho vermelho e cedros

enfeitam a paisagem de magnólia,

de bambu e cerejeiras.

Estiveram na explosão de Hiroshima

e também de Nagasaki.

E vieram como o fogo do estrondo

rompia os tímpanos do dia infindável.

Vieram de Kanto,

de Kinki e de Ishikari.

E o oceano soube compreender quando clamavam.

E chorou com eles olhando as migalhas,

os restos do fragor, disseminados. (Me escrevem da montanha da coragem)

 

Somente o olhar de um Profeta, como Carlos Garrido Chalén, pode descrever com abrangência como “Quinhentas e oitenta e três espécies de aves majestosas/ chegam de Rebinguó/ para perfumar a paisagem./ Tocam marimba e bongô/ e em Bonin e Jima sustentam-se de aspirações./ Escutam-se na Coreia seus avisos/ e no sul da Sibéria/ seus cânticos de guerra./ E aonde o monte Fuji se localiza/ sessenta e seis espécies de peixes e répteis/ amotinam-se./ Mamíferos de cento e trinta e duas espécies/ confabulam com a tarde/ e os pássaros da ruína refazem a pele das colinas./ Chegam do pedregulho, do musgo e da vassourinha,/ supondo que para a morte não há lugar./ Ursos pardos, raposas e cervos/ abandonam Honshu porque do céu a lava chove/ e se faz tarde. (Chegam de Ribenguó para perfumar a paisagem)”

 

Com licença para atuar como pássaro silvestre na eternidade, o poeta peruano é depositário de notícias exclusivas, até mesmo do próprio Deus que vive nos arcanos, com o qual costuma igualar-se por amizade e de vez em quando lhe transmite a imensa dor que sente, ante uma humanidade que rema contra todas as marés e que se choca diversas vezes com a mesma pedra.  Nessa aproximação com a Divindade, o Rei dos vidoeiros conta-lhe seus segredos e, em “seus ternos vaticínios”, demonstra-lhe sua bondade.

 

De sua amorosa concordância, no Céu do Céu,

escreveu-me uma carta

o Rei do vidoeiro

trouxeram-na até minha casa

as pombas do Reino

flutuando entre grinaldas

e orquestradas de luz.

Nelas o Deus Eterno,

com sua aragem de flores

diz-me que no silêncio

range a Eternidade,

que o inferno e sua casta

de demônios vociferam

e há roncos de trompas

no fundo do mar,

pombas que titubeiam

afogadas por infartos

e guirlandas que se trançam

pois não sabem amar.

E diz que em Hiroshima

uma flor se levanta

e em Nagasaki brilha

o sol de outra verdade;

que as guerras, as deslustra

a morte do inferno

e há dor em sua alma

porque não existe paz. (Me escreve o mesmo Deus que canta nos arcanos)

 

E ainda que sempre angustiado pela história de Hiroshima e Nagasaki, Garrido Chalén horroriza-se para sacudir-nos: “Não sei ler, porém me escrevem,/ – relata em carta hermética –/ contritos,/ os mortos/ que ressuscitam de amor em Nagasaki./ Voam com as asas da águia até mim,/ desde Hiroshima,/ seu dorso debilitado pelo pranto./ Passam com desespero/ para vencer o furacão/ e o mar hostil./ Vêm da montanha do desprezo/ e do vale da ira desatada./ Do rio da amargura/ emergiram seus presságios/ e de canoa,/ em naves e a nado/ apressam-se a vir/ para contar-me/ seus segredos mais íntimos./ São do país do milagre e me escrevem/ dos recônditos/ de sua raiva sempiterna./ Foram liquidados pela morte súbita/ contudo negam-se a morrer/ e me escrevem com o coração/ de próprio punho/ e com a alma. (Me escrevem com o coração, de próprio punho e com a alma)

 

Quero aprender cantando

a ler no Céu

o que escrevem amando

as rosetas do sol

como se leem aladas as magnólias

ao vento

que floreia a bruma

em homenagem a Deus.

Nessa dinastia de amores transcorridos

consola-me o espírito

que cintila no mar,

esse arrastar de almas

que rangem entre as sombras

sobre as quais vigora

índigo a solidão.

 

Solidão intensa

que sustenta os gritos

e se converte em brisa

em cada entardecer

que não tem idioma

e rouba a noite

e às vezes a constrói

e fortalece o amor. (O que escrevem amando as rosetas)

 

É esse mesmo poeta, formoso e coerente, quem quer convencer-nos de que não sabe ler, porém lhe escreve “a aurora no plenilúnio/ e o entardecer do equinócio/ e o solstício de todos os clamores”; que lhe escreve o arco-íris “que cria borbulhas no oceano/ no ventre da baleia que tragou Jonas/ para semear seus pactos”, em seu sangue, e nos conta que “quando a lua cheia/ se detém pretensiosa” em seus domínios e em seus “prados esverdeados”, “e tudo parece dia”, em seus terraços, e iluminam-se de cisnes seus picos elevados, escreve-lhe o silêncio “desde que Elias tornou-se profeta”, para contar-lhe como nasceu o caos “no tobogã do outono que desatou o furor” e se revela.

 

Todos me escrevem

e já não sei o que fazer

com todas as cartas que recebo.

E como o mais dócil de todos os ruminantes

– o que ama às escuras

e torna-se um luzeiro do universo quando sonha –

não sei como ler-me a mim mesmo

quando calo.

Como ler a todos

se venho da casa do pintassilgo

mas alheio me é o som

de seu peito de pinkuyo.

Se nada do que está aqui me pertence

e as palavras que o horizonte vomita

terminam por convencer-me

que não sabem porque foram inventadas

pela vida.

– Não é o momento

de plantar novas sementes – disseram-me,

eu vi como o tempo acelerava-se vigesimal

nas esquinas do vento

e como sobre a Árvore do Mundo

alguém assediava a noite com perguntas.  (Não sei ler, porém me escreve a alma no plenilúnio)

 

O mundo tem uma formosa oportunidade para conhecer um poeta extraordinário, que em sua obra, “Não sei ler, porém me escrevem” (No sé leer, pero me escriben), nos comove e enaltece.

 

Dinair Leite

Poeta e escritora brasileira, Embaixadora Universal da Paz no Brasil

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Respuestas a esta discusión

Maravilhoso, felicito aos dois poetas, bjs MIL.

Trabajo meduloso acerca de la gigantesca obra poética de Carlos que merece sed traducida ya que leer y escuchar en otras lenguas, significa un puente de acercamiento y fraternidad.

Felicitaciones  Dinair- Felicitaciones Carlos

¡QUÉ TRABAJO TAN MARAVILLOSO!

ESTA NOTICIA ME HACE MUY FELIZ.

MI ABRAZO FRATERNO.

MIL GRACIAS POR BELLO APORTE, NUESTRO POETA ES MERECEDOR DE ESTO Y MUCHO MAS

Felicitaciones Maestro

FELICITACIONES TOCAYO, MUTO BUENO, SALUDOS

¡Oh que bien!!  Felicitaciones!!

Excelente escrito sobre a obra do poeta Carlos Garrido Chalen

Merecido galardón, Don Carlos Garrido Chalén...

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Ando revisando  cada texto  para corroborar las evaluaciones y observaciones del jurado, antes de colocar los diplomas.

Gracias por estar aquí compartiendo tu interesante obra.

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